Friday, May 23, 2025

ESOTÉRICO

 


"A contradição da verdade conhecida por tal: andei muito tempo sem saber quem era o «tal», mas depois soube e ri-me. Durante dias e anos julguei que o verbo incarnado era o verbo encarnado, e a prova de que o meu universo religioso era vago e esotérico é que a minha fé não sofreu alteração no dia em que o verbo deixou de ser vermelho e passou a assumir a nossa humanidade e a morrer numa cruz. Com o estudo da apologética a coisa piorou um pouco porque, a meu ver, os heréticos tinham quase sempre razão. A metafísica era, naquele contexto, a mais acabada manifestação de onanismo mental, porque ficávamos imensamente estafados e contentes depois de uma aula a falar no «ser enquanto ser», no «ser em si», no «ser em lá», no «ser em dó», sem que nada ficasse a ganhar com isso além da nossa satisfaçãozinha pessoal."


António Alçada Baptista, Peregrinação Interior, vol. I, 8.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1999, p. 42. 

Tuesday, May 20, 2025

LITURGIAS

 



"Sinto que se está preparando no mundo o grande processo contra a razão, mas a maneira como está a ser feito não me seduz. Anseio por uma grande explosão barroca e neo-romântica, gostaria que as pessoas tivessem consciência da necessidade de enfrentar profundamente o desafio do mistério que paira sobre o mundo dos homens e que oferece gratuito à nossa exploração. Incomodam-me as linhas rectas e os ângulos, detesto escrever com lápis n.º 3 e desejaria viver numa casa de Gaudi, que prolongasse a natureza em vez de a agredir, mas receio que mais uma vez se esteja a ceder à facilidade e que seja ainda o desejo de segurança, a necessidade duma mesma consolação beata e um fácil encontro com os outros -  um encontro de quem está só e não de quem leva coisas para partilhar - a motivação desta irrequieta procura por um mundo de respostas demasiado acessíveis e prontas. Trata-se de valores pré-racionais, quando me parece que os valores a penetrar não podem fazer tábua rasa da grande experiência da razão. Ora o obscurantismo não é o mistério, o academismo não é o barroco, o infantilismo não é a ingenuidade, o verbalismo não é a poesia, o confusionismo não é a imaginação criadora, a irresponsabilidade não é a aventura, o desespero não é o risco. Afastámos a revelação da Bíblia, mas aceitamos a revelação dos astros, das videntes e das cartomantes. Afastámos a liturgia dos templos, mas caímos nas pequenas liturgias."


António Alçada Baptista, Peregrinação Interior, vol. I, 8.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1999, p. 17.  

Monday, May 19, 2025

TEMPOS PERIGOSOS

 


"Maio. Direis que a terra estremece. Já rebentaram novas fontes. Aquece-a o sol, e tonta, caiu num sonho cheio de rumores, levadas de água, toda envolta em oiro... É um tempo perigoso para os solitários. Se se deixam cismar, numa noite destas em que a terra ao luar parece inchada, ei-los perdidos. Foi decerto em Abril que o diabo tentou Fausto, e é sempre na Primavera que os monges, abrindo as janelas dos cubículos, ficam absortos, embebidos de luar e perdidos de sonho. Quando de manhã caem em si, a pedra a que se encostaram está toda molhada de lágrimas..."


Raul Brandão, «Nossa Senhora do Lar de João Rocha», in A pedra ainda espera dar flor - Dispersos 1891-1930, org. Vasco Rosa, Lisboa: Quetzal, 2013, p. 156. 

Sunday, May 18, 2025

DA POLÍTICA

 



"Ao passo que vasqueja e expira a luz
do templo onde, algum dia, celebraram
o Passos e o Mouzinho, e os que arrastaram
em terra estranha a esmagadora cruz,

na imprensa, uns pugilistas, braços nus,
uns contra os outros, rábidos, disparam
sarcasmos que ao diabo não lembraram...
Que línguas, santo nome de Jesus!

Ó deus dos seis Afonsos e das Quinas!
Se um vil desabamento nos destinas,
escuta o meu sincero e ardente voto:

faz pena este acabar quase indecente...
Concede-nos morrer mais seriamente;
transmite-nos, Senhor, um terramoto."



Camilo Castelo Branco, Nas Trevas, selec. José Vieira, Alcobaça: Carrack Books, 2023, p. 75.

Saturday, May 17, 2025

OS REMANSOSOS DIAS

 



"Das trevas d'além-mundo o esposo amado,
Rainha, é Rei convosco! Inda reinais,
que o vosso trono assenta em pedestais
dos corações que tendes conquistado.

Mas que delícias tem esse reinado?!
Senhora, alguma vez não invejais
os remansosos dias, sempre iguais,
dum doce egoísmo calmo e recatado?

Reinar... reinar chorando a cada hora!
O vendaval da dor que ruge fora
e a própria dor... quimeras dolorosas!

Há tanto abismo em flóridos caminhos...
O diadema de Cristo era de espinhos...
Sagradas sois, coroas tormentosas!"


Camilo Castelo Branco, Nas Trevas, selec. José Vieira, Alcobaça: Carrack Books, 2023, p. 25.

Friday, May 16, 2025

ASFÓDELOS

 



"Pintar flores é mais difícil do que pintar montanhas! Porque uma flor é ao mesmo tempo uma realidade e um floco de sonho. Nela entram os mais ricos materiais, mas muito maior quinhão de ilusão. É um ser de beleza, mas efémero: extraordinário mas vivendo um ai. É o oiro, o mármore, e ao mesmo tempo a nuvem que o vento leva. Vive com os pés no sepulcro. Todo o Inverno leva a planta a sonhar, a preparar-se, e um dia vem em que se desfaz num lindo sonho. É necessário ao artista surpreendê-las quando elas, inebriadas, assustadas, entram na vida, e as encharca o azul e as empoalha o sol, luzindo no orvalho. Há horas em que as flores sonham, há outras em que se extasiam..."


Raul Brandão, «Uma vida escondida como a das fontes», in A pedra ainda espera dar flor - Dispersos 1891-1930, org. Vasco Rosa, Lisboa: Quetzal, 2013, p.140. 

Thursday, May 15, 2025

A VIDA

 


"A vida está tão bem feita, é tão justa, que até as feias um dia foram novas e até as bonitas serão velhas."


Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória - Memórias [1906-1939], 2.ª edição, Lisboa: Editorial Verbo,  1988, p. 164. 

Tuesday, May 13, 2025

TREZE DE MAIO

 


"Os três pastores quedaram silenciosos. Pasmos e tristes, nada sabiam dizer-se. Deviam ter ficado naquela crepuscular soledade de quem se vê ausente da Beleza!...
Em roda, a natureza voltara a ser o que era antes. O sol queimava; e o rebanho, espalhado, deitara-se, no rosmano florido de roxo, à sombra das azinheiras copadas de duros verdes como sobreiros."


Antero de Figueiredo, Fátima - Graças segredos mistérios, 8.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, 1936, p. 27.

Monday, May 12, 2025

SIMPLES MATÉRIA

 


"No nosso século todo o sonho é um entrave. A humanidade divide-se em dois largos campos: a parte a quem coube o quinhão de dor e com ela às vezes o génio, e a outra egoísta e feroz. A matéria impera no espírito: manda, ordena, impõe-se. Qual é o fim da vida senão este  - o Gozo? E qual é a maneira de dar pela satisfação à matéria senão uma - o Oiro? Oiro para mandar, oiro para calcar. E depois só o nada existe, porque para esta alma a vida não passa de um erro antigo; esta alma, que é a própria e simples matéria, continuará a viver transformada no céu em nuvem, no mar em alga, na terra em raiz, no infinito em tormenta. Outrora as criaturas não se fartavam de Sonho. E se a desgraça era grande, Deus, como um brasido, bastava para aquecer todas as mãos enregeladas de dor."


Raul Brandão, «Fialho de Almeida», in A pedra ainda espera dar flor - Dispersos 1891-1930, org. Vasco Rosa, Lisboa: Quetzal, 2013, p.100. 

Sunday, May 11, 2025

GERAÇÃO

 


"Porque os fantasmas, uma vez criados, nunca mais nos deixam. Acompanham-nos toda a vida. Geramo-los com os nossos actos, chegando a ter assim uma existência muito mais real e tangível do que a dos outros seres com quem lidamos todos os dias. Por fim dominam-nos."


Raul Brandão, «Camilo e o fantasma», in A pedra ainda espera dar flor - Dispersos 1891-1930, org. Vasco Rosa, Lisboa: Quetzal, 2013, p. 91. 

Saturday, May 10, 2025

ETÉREAS

 


"Que maravilhosas habitações, as rosas, os cravos, as gardénias, todas as flores que surgem como por encanto na terra - neste lido mês de Maria!... Nenhum palácio se lhes compara, nem mármores, nem jóias! São os tecidos mais maravilhosos que dar se podem! Há carnações olímpicas, outras desmaiadas e tenras; há as exangues, pálidas, que vivem minutos e têm a aparência de crimes ou lepras. Já não falo das formas, deixo de lado os recortes de uma trama e de uma finura incomparáveis... são de matéria e ao mesmo tempo são etéreas... Mas as cores! Oh as cores construiu-as Deus, de tinta e sonho."


Raul Brandão, «Maio», in A pedra ainda espera dar flor - Dispersos 1891-1930, org. Vasco Rosa, Lisboa: Quetzal, 2013, pp. 18-19. 

A VIDA

 



"A vida sem fé é um túnel sem fim, mas sem esperança é um corredor às escuras que não leva a parte nenhuma."


Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória - Memórias [1906-1939], 2.ª edição, Lisboa: Editorial Verbo,  1988, p. 32. 

Friday, May 9, 2025

SOB O SIGNO DE LEÃO

 



" - Uma imagem, um pensamento! Uma imagem humana e um pensamento humano! Sim, está certo, isso é tudo o que eu sou para si! Não passa de um tolo romântico e sonhador. Ralph de Bricassart! Sabe tanto o que é a vida como a mariposa com que o comparei! Não admira que se fizesse padre! Você não poderia viver com tudo o que a vida tem de comum, se fosse um homem comum, tal como Luke, o homem comum, também não pode! Diz que nem me ama, mas não tem a menor ideia do que é o amo; está apenas a pronunciar palavras que memórias, porque acha bonito o som delas! O que me desconcerta é que vocês, homens, ainda não dispensaram de todo, a nós, mulheres, e é justamente o que gostariam de fazer, não é? Deviam arranjar maneira de casar uns com os outros, pois assim seriam divinamente felizes!
- Meggie, não fales assim! Por favor, não fales assim!"



Colleen McCullough, Pássaros Feridos, trad. Octávio Mendes Cajado, s. l.: (sic) idea y creación cultural, 2008, p. 240.

Tuesday, May 6, 2025

APETITE VISUAL

 


"A chegada a uma cidade desconhecida corresponde uma espécie de excitação dos olhos, de mobilidade, de apetite visual: a alegria de um olhar «desabituado» (é outra luz, sem dúvida, e são outros os rostos, outra a arquitectura, outros os letreiros das lojas e dos anúncios). No dia seguinte à chegada, gasto três rolos fotográficos, mas levo três dias a acabar o quarto rolo... Para mim, a fotografia de viagem é uma espécie de pulsão, de histeria que se esgota muito rapidamente."

 

Hervé Guibert, A Imagem Fantasma, trad. Amândio Reis, Lisboa: BCF Edições, 2023, p. 87. 

Sunday, May 4, 2025

DIA DA MÃE

 



"Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe..."


Sebastião da Gama, Serra-Mãe, 3ª ed., Lisboa: Edições Ática, 1968, p. 113.

Saturday, May 3, 2025

A ÁGUA

 



"A água é tema primacial no romanceiro português. Também o é na vida. Temos falta de água, como de carvão, como de ferro. Somos pobres destes elementos, o que é no fundo uma das razões da nossa indigência."


Aquilino Ribeiro, O Homem da Nave – Serranos, caçadores e fauna vária, 2ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 186. 

Friday, May 2, 2025

A IDEIA DO FIM

 



"Zadkel:
- Enganaste-te no fruto que colheste. As mulheres irão sempre adiante dos acontecimentos, por curiosidade e por gosto da antecipação. O outro fruto era o da Imortalidade.
Adão, tomando uma atitude:
- Mas eu não quero viver eternamente. O gosto das coisas tem um fim. Lutar para viver estimula muito mais a energia que o descanso sem limite e sem tempo. Há uns momentos, quando subia esta colina, fui possuído pela ideia do fim, mas de um fim onde as coisas actuais não se encontram comprometidas. Fui mal interpretado. O fim de uma coisa será sempre o princípio de uma outra coisa. E, no meu caso, esta coisa chama-se redenção, salvação."


António de Cértima, O Primeiro Dia do Homem Fora do Paraíso, Lisboa: Edições Ática, 1960, pp. 200-201.

VENTO

 



"É tão bom
sentir a ventania lá por fora
e a calma cá por dentro!...

Ou o contrário disto:
vento e raiva cá por dentro, e, lá por fora, uma calma
que mais parece um gesto ou um olhar
de Cristo...

Ou, então,
chegar a esta confusão
de não saber se o vento é lá por fora
se é cá por dentro..."


Sebastião da Gama, Serra-Mãe, 3ª ed., Lisboa: Edições Ática, 1968, p. 66.

Thursday, May 1, 2025

O APANHADOR DE ERVAS

 



"Não julga: ele conhece, extrai
e depois entrega ao sol o cardo-santo
e a diabelha, o fel-da-terra
e a sempreviva, a erva do amor
e a do homem enforcado.

Seres próximos, opacos, de sua casa,
o campo, por si rebuscados com mão silvestre.
Picado foi pela unhagata e pela silva,
que de si próprias confiaram
o germe sanguinoso e o fluido salutar.

Não julga: constante o eflúvio
do gerânio, do sinuado absinto,
viçoso ou seco. Crê na arruda, nesse acre
odor que perfuma bruxas. Caça por cima
o alecrim, será mais forte dentro

de breves rebentações venais. Anda
pela vala real, pródiga de bergamotas
brancas, manjeronas, há quarenta anos.
Destila na caldeira de seu avô
plantas aromáticas, medulares:

lume brando, vivaz, de eucalipto, e o suco
perpassando serpentinas de água, vitorioso,
álcool vindo de alambique. Leva a merenda,
trinca folhas de menta, tem a elástica
prontidão da vulnerária acorrendo na ferida.

Não julga: notória ternura, a sua, pela cavalinha,
ama aquele verde resplandecente e rápido,
até raízes aproveita para doentes
desenganados; servidor augusto de elixires,
procura, amontoando, a bravia erva da vida."



António Osório, "Outra Face", in Eduardo Lourenço, António Osório, Lisboa: Editorial Presença, 1984, pp. 228-229.

Tuesday, April 29, 2025

ELOGIO DA SOLIDÃO

 



"Porque é que a solidão em mim é força,
certeza, confiança e decisão?
Porque é que a solidão é um limite, 
um foco, uma vontade, a vigilância?

Sei que tudo é dado estando um só
ou estando acompanhado com o seu verbo. 
Sei que tudo é nosso, em inocência,
na paz de estar seguro e sem algozes.

Os importunos são inimigos.
Ou não os oiçam quando estão falando
ou não lhes toquem."



João Rui de Sousa, O fogo repartido - poesia (1960-1980), Litexa, s. d., pp. 78-79.